quarta-feira, 21 de abril de 2010

A LAGARTIXA

No começo se é criança, e a visão do bicho ousado subindo pela parede é devastadora. Não aceitamos, em nosso quarto, essa presença. Não contemos os gritos. Choramos por ajuda, até que alguém maior e mais forte, heroicamente, salve-nos do perigo e desespero, e atire o mal pela janela.

Depois, mais crescidos, decididos e inabaláveis adolescentes, mais ousados ainda que o inquietante animal, afirmamos com veemência que não o tememos. Ainda assim, pedimos socorro com olhar ausente e discreto. Não é medo – mentimos – é repulsa. Só isso. E ainda alguém nos livra da chateação.

Amadurecemos. Com o tempo aprendemos a matar nossas próprias lagartixas. A primeira nos traz a maravilhosa sensação de poder. A segunda, nos reafirma de nossa capacidade. A terceira, nos é indiferente.

E então, uma noite, somos seres independentes e solitários, olhando, no teto, a lagartixa que faz de nosso quarto, seu reino. No primeiro dia, ignoramos. Não contamos a ninguém que demoramos a dormir. Escondemos o fato de que por vezes, acorda-nos no meio na noite o coração violento, o corpo levemente tremulo e a mente em negação.

Mas o cansaço vem chegando, ainda maior que o bicho... Ainda maior que o medo...

Na segunda noite, entramos em casa exaustos, com nossos uniformes, nossos contratos e nossas chaves de carro... Lembramos do bicho. Olhamos pro teto. Pensamos em pegar a escada escondida numa pequena despensa do apartamento, mas caímos no sono antes disso. As vezes, sentimos calafrios e os ignoramos.

O terceiro dia é o da decisão. Revoltados pelas noites mal dormidas, os olhos fundos, o corpo dolorido, entramos em casa e vamos direto ao nosso quarto, caminhando pesadamente, orgulhosos de uma força imensa que nos dá a certeza de que o bicho está com os minutos contados. Mas no teto – surpesa! – não há nada.

Arrastamos móveis. Obstinados, reviramos a casa. Abrimos gavetas, tiramos quadros do lugar. Nenhum sinal. Balançamos a cabeça. Dizemos a nós mesmos “ela se foi.” Mas sentimos ainda sua presença, como algo pessoal, quase sádico, nos torturando e causando pesadelos.

É lá pela quinta ou sexta noite que a reencontramos. No alto da parede. Tão alto, tão longe... Mas nossa força já se foi. O consolo dos travesseiros e a esperança do descanso derrota nosso desejo por auto-superação. Pensamos enfim em tudo que aprendemos sobre as lagartixas, tão inocentes e inofensivas. Pesamos prós e contras até que, deliciosamente rendidos à hipocrisia e ao alívio que ela nos traz, fechamos os olhos, sorrimos pra ela, até. Dormimos tranqüilamente.

É então que a lagartixa sorri para nós. E desce, vitoriosa, de sua parede. Contorna a cama, debochada. Toca os nossos dedos dos pés. Acaricia-nos a batata da perna. Caminha, segura de si pelas nossas coxas e sem acordar-nos de um sonho bom, penetra-nos o sexo, aninhando-se enfim em nossas entranhas.

Nunca mais a vemos. Ela agora é parte de nós.


tavi