No começo se é criança, e a visão do bicho ousado subindo pela parede é devastadora. Não aceitamos, em nosso quarto, essa presença. Não contemos os gritos. Choramos por ajuda, até que alguém maior e mais forte, heroicamente, salve-nos do perigo e desespero, e atire o mal pela janela.
Depois, mais crescidos, decididos e inabaláveis adolescentes, mais ousados ainda que o inquietante animal, afirmamos com veemência que não o tememos. Ainda assim, pedimos socorro com olhar ausente e discreto. Não é medo – mentimos – é repulsa. Só isso. E ainda alguém nos livra da chateação.
Amadurecemos. Com o tempo aprendemos a matar nossas próprias lagartixas. A primeira nos traz a maravilhosa sensação de poder. A segunda, nos reafirma de nossa capacidade. A terceira, nos é indiferente.
E então, uma noite, somos seres independentes e solitários, olhando, no teto, a lagartixa que faz de nosso quarto, seu reino. No primeiro dia, ignoramos. Não contamos a ninguém que demoramos a dormir. Escondemos o fato de que por vezes, acorda-nos no meio na noite o coração violento, o corpo levemente tremulo e a mente em negação.
Mas o cansaço vem chegando, ainda maior que o bicho... Ainda maior que o medo...
Na segunda noite, entramos em casa exaustos, com nossos uniformes, nossos contratos e nossas chaves de carro... Lembramos do bicho. Olhamos pro teto. Pensamos em pegar a escada escondida numa pequena despensa do apartamento, mas caímos no sono antes disso. As vezes, sentimos calafrios e os ignoramos.
O terceiro dia é o da decisão. Revoltados pelas noites mal dormidas, os olhos fundos, o corpo dolorido, entramos em casa e vamos direto ao nosso quarto, caminhando pesadamente, orgulhosos de uma força imensa que nos dá a certeza de que o bicho está com os minutos contados. Mas no teto – surpesa! – não há nada.
Arrastamos móveis. Obstinados, reviramos a casa. Abrimos gavetas, tiramos quadros do lugar. Nenhum sinal. Balançamos a cabeça. Dizemos a nós mesmos “ela se foi.” Mas sentimos ainda sua presença, como algo pessoal, quase sádico, nos torturando e causando pesadelos.
É lá pela quinta ou sexta noite que a reencontramos. No alto da parede. Tão alto, tão longe... Mas nossa força já se foi. O consolo dos travesseiros e a esperança do descanso derrota nosso desejo por auto-superação. Pensamos enfim em tudo que aprendemos sobre as lagartixas, tão inocentes e inofensivas. Pesamos prós e contras até que, deliciosamente rendidos à hipocrisia e ao alívio que ela nos traz, fechamos os olhos, sorrimos pra ela, até. Dormimos tranqüilamente.
É então que a lagartixa sorri para nós. E desce, vitoriosa, de sua parede. Contorna a cama, debochada. Toca os nossos dedos dos pés. Acaricia-nos a batata da perna. Caminha, segura de si pelas nossas coxas e sem acordar-nos de um sonho bom, penetra-nos o sexo, aninhando-se enfim em nossas entranhas.
Nunca mais a vemos. Ela agora é parte de nós.
3 comentários:
Tatuou esse bichinho em vc? rs
Beijosssssssssssss
Perfeito!!
Adoro sua forma de se expressar, a forma como escreve.
Começar a te ler ,é como entrar em uma viagem.
Lenta, questionadora, inesperada, instigante.
Chegamos ao fim, e as palavras ficam em nossa "mala" de viagem, chamada cérebro.
Viajei literalmente, mas é assim que me sinto quando leio seus textos.
Beijos
nyssa,
Eu não...rs. Eu tenho pavor desse bichinho aí...
Beijos!
La Femme
Nossa, muito gostoso ler seu comentario. Obrigada por me ler e me compreender! Beijos!
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