sexta-feira, 9 de outubro de 2009

ANDROGINIA

Simples assim.
Acordou e não havia sequer uma carta de Adeus.
Ela se fora e levara com ela até as cartas de amor antigas. Até as canções.
Ele ficou horas e horas jogado na cama vazia, tentando imaginar o porquê.

Rastreou sua mente buscando por culpas, por falhas, e não as encontrou.
Lembrou cada palavra das ultimas conversas e não havia palavra torta. Os beijos tinham sido todos perfeitos. Os momentos, todos mágicos. Os toques, cada um deles intenso e avassalador.
Olhou também para os seus sentimentos por ela. Estavam todos ali, como sempre haviam estado. A única macula agora era a tristeza e essa dor aguda, no meio de tanto amor e desejo.
Ele estava perdido. Chorou e em seu choro perguntou-se se ela podia senti-lo. Se pudesse, ela saberia que há certas coisas que não se faz. Até um abandono é aceitável. É um direito de todo ser que ama deixar de amar. Mas abandono sem explicação é crueldade. E crueldade não é aceitável.
Ele então se convenceu de que tinha de fazê-la saber de seu sofrimento. E teve algumas boas idéias. Mas quando era hora de colocá-las em prática, algo o segurava. Ela sabe – ele pensava – Ela sabe e simplesmente não se importa.

Olhou no espelho. Odiou suas vestes de homem. Despiu-se. Odiou então o próprio membro. Odiou-se por ser homem e não saber. Se fosse mulher, pensou, certamente saberia o motivo do abandono. Com certeza a essa altura, algum ombro se dizendo amigo, revelaria comentários e desabafos antigos que explicariam o fato. Saberia ele porque havia sido condenado a tão dura pena. Seria digno, como são dignos os criminosos na prisão, a quem não se nega o direito de conhecer a acusação que pesa contra eles. Lembrou com certa inveja, de que mesmo aos assassinos se dá o direito de defesa, o direito de ter sua vida exposta e dissecada em julgamento. O direito de ver os lábios das testemunhas que os destroem moverem-se, e de impor que elas não digam nada até que façam um juramento. E nem aos que se encontram no corredor da morte, aguardando execução, é negado o direito das ultimas palavras. Já as dele, lhe foram negadas. Nada lhe foi perguntado. Nada foi considerado. A ele só couberam a condenação e o silencio.
Talvez fosse ainda pior. Talvez não houvesse um fato, uma desconfiança, um mal entendido. Talvez ela tivesse simplesmente se cansado dele, como cansam tantas vezes os amantes uns dos outros. E tivesse optado por evitar o transtorno de ter que explicar. Talvez não soubesse ela, ou não quisesse, lidar com a tristeza que causava.
Mais uma vez, ele chorou, agora frente à certeza de que nunca saberia o porquê.
Depois, derramou ainda algumas lágrimas que brindaram um passado de sentimentos tão fortes, de um amor inexplicável, de uma ligação incomum, de sonhos, tantos sonhos, que ela havia renegado, e que ele, deveria, com o tempo, aprender a renegar também.
Chorou a solidão. Só ela o completava.

Andou então até o retrato dela, abandonado na estante. Admirou mais uma vez seus traços doces. Correu os dedos, tocando-lhe a imagem dos cabelos. Deixou até que seus lábios tocassem os dela, estáticos e frios, protegidos pelo vidro. Desnudou-a dessa proteção. Pegou a foto, já sem moldura, nas mãos tremulas. Em um impulso violento, quis rasgá-la. Não pode: era ela!
Mas teve forças de agarrar um lápis oportuno que deitava na mesinha. E sob os lábios delicados, pintou-lhe um terrível bigode.


tavi